quarta-feira

Bocados do invisível

Há vezes em que não sei de que lado estou. Se do mal se da vontade. Se do perdão se da vingança. Se da mulher se da fêmea. São bocados de mim que se alternam no todo de quem sou. Nunca todos num só dia nem nenhum com mais peso que o outro. Reajo no bocado de animal se me desiludem. Mas sinto-me carne e essência se me amam. E sinto o pedaço do corpo a moldar-se ao bocado do invisível tanto mais quanto eu amo.

terça-feira

Pão

Quem gosta e lê poesia alimenta-se desse fio ténue entre o formato real e o transporte para o imaginário. Come aos pedaços as páginas sedutoras do amor alheio e enxuga as lágrimas do autor nas suas. Mas quem dá de comer ao poeta? Aos seus bocados de sentir quer na inflamação declarada do seu objecto amoroso quer no lamento uivado das noites de solidão? É o poeta e quem o lê um todo? Ou duas metades de um pão nutritivo que satisfaz tantas bocas?

segunda-feira

Recados

Os recados vivem muito de quem os lê. De quem os espera. Nem sempre lidos e entendidos como quem espera por parte de quem os deixou. Deturpação do verbo no som da leitura. Onomatopeia das intenções. Sentidos. Alerta. Expectativas. Desilusões. Os recados são bocados de nós que deixamos aos outros na esperança de que eles vejam o nosso todo. Mas se nem mesmo o nosso todo é por vezes entendível a nossos olhos, como esperar que do alheio cumpram o recado sem se desviar pelo caminho do bosque?

domingo

Nús

Acto promíscuo este da escrita. Revelam-se sons, cheiros e apetites. Anda-se nu de partes pudendas, por aí, bocados de pele à vista sem pudor algum, exibicionismo dos afectos e dos sonhos. Mais se despe nestas linhas do que no bordel à hora. E quando nos apercebemos dos bocados entregues tarde demais! Saltamos para dentro de outros corpos à laia de traje. Lá vamos nós. De novo. Promiscuamente. Enganados por acharmos que enganamos outros. Só porque aparecemos diferentes.

sábado

Saber partir

Por muito que se queira, que se force, que se rompa há bocados que deveremos sempre deixar despegados de outros. São pedaços de per si, inteiros, completos como um todo. Alinhá-los, compará-los e pior que tudo tentar a sua união ao padrão uniforme é aniquilar a beleza do que os fez. Por isso, não há que teimar na continuidade do que já terminou. Puír esses bocados na tentativa de revelar alguma originalidade é matar todo o belo que até então brilhou. Esquece-se o que foi e só se lembra como foi mau na despedida.

sexta-feira

Saber dizer

Não basta abrir a boca e cuspir sons em forma de palavras. Mesmo que estas procurem no requinte ridiculo a originalidade da frase. Muito melhor falá-las simples. Puras. Vindas directas do coração. Como bocados de nós que se dão e se mostram sem máscaras ou convencimentos da verdade única. Escolhê-las sim, mas pela importância do momento e de quem as recebe na escuta saborosa de saber o sentido que trás envelopado. Para momentos solenes escolho dizer silêncio. Os meus olhos falam esses bocados por mim.

quinta-feira

Saber receber

Não compete ao dador por exclusividade a sabedoria da entrega. Deixa de ser relevante o que se dá se o receptor não souber o tamanho do que aceita. O momento que se oferece requinta-se no gesto único de ser aquele e não outro, um bocado de sentires que se escolheu e se atribuiu grande por ser para quem é. Mesmo no agradecimento da dádiva não basta a vénia e a profusão de palavras. Muito mais se dá no receber quando se sente que aquele é especial. E basta uma só palavra para a eloquência do gesto.

quarta-feira

Saber ver

Do saber ver e passar os olhos há a diferença do aprender. Mirar no relance estende um tecido sem pormenor ou relevo. Perde-se o detalhe dos poros abertos ou apertados da pele arrepiada e da pele satisfeita após o beijo. Atirar o olhar magoa pela despreocupação do gesto, pelo bocado desajeitado que se cola nos pedaços importantes. Cacos em diagonal. Banalização na pressa de formar um todo quando a sabedoria está em manter perfeito o que é singular ao olhar. Na maioria das vezes, tão ínfimo.

terça-feira

Saber guardar

A propósito de segredos. E segredinhos. Bocados de verdades escondidas. Pedaços de verdades ajeitadas a bel-prazer do seu ouvinte. Bocados do irrepetível. Recortes do tapado e do descoberto. Verdades que embrutecem como um diamante por lapidar. Pedras que foram preciosas e no cadinho das bocas se transformaram em vidros sem refractar a luz. É esta a diferença entre segredos e segredinhos. O que se guarda e o que se desrespeita.

segunda-feira

Faz de conta que sim

Faz de conta. Faz de conta que é verdade aquilo que se diz. Que é mesmo a sério. Faz de conta que é sério e profundo e tão verdadeiro como se fosse verdadeiro. E neste pedaço de faz de conta é mesmo verdade, é o todo sem se fazer de conta. Mas não se diz. Faz-se de conta.

domingo

Experiências

Nada se começa de novo. A ingénua mentira de debutante. Tudo se recomeça. Se pega num qualquer fio que veio de trás e arrasta a memória no conhecimento do que já fora. Dos bocados de outros ensaios restam fiapos que servem de âncoras e prendem-se ao fundo da experiência.
E nem mesmo assim se aprende a desamar o que não presta.

sábado

Audaciosa(mente) (sem mentira)

Atrever-se a escrever sobre si. Audaciosamente. Com sublinhados. Nas partes boas e nas partes más. Escrever para melhorar. Para expurgar. Para compreender. Para mostrar bocados dos sentidos. A si mesmo. Como se a outro fossem exibidos. Confrontar sentidos e sentimentos. Realidade e desejo. Sonho e cumprimento. Metas e desvarios. Atrever-se a doer. Atrever a doer-se. Revelar. Amar. A mim para poder bem aos outros. Nos seus retalhos e no seu todo.

sexta-feira

Palavrinhas

As palavras não custam a ser ditas. Basta abrir a boca e sonorizá-las. Sussurradas ou gritadas. As mais dificeis são as ditas em silêncio. As mais importantes são as escritas. As mais mentirosas são as palavrinhas. As de maior relevo as que se usam pouco com medo do gasto. Como amo-te. Não se gasta dizê-lo mudo mas corrompe-se na repetição vulgar.

quinta-feira

O meu todo

O meu todo é feito de pedaços de mim que já o foram. O que será é um retalho feito de fios entrelaçados no desconhecido. Embora deduzível pelos bocados que já constituem o todo do que sou agora. A esta distância vejo o meu todo que já foi como bocados que reconheço e outros que aparecem de outro todo como se nunca houvera sido do mesmo todo que sou agora. Nesta mudança do todo para bocados e de pedaço em pedaço que me fazem no meu todo actual há uma evolução de saltos. É que há retalhos que de tão ásperos preferi escondê-los e se o meu todo é um tecido estes são as bainhas. Estão para dentro, não se vêem, mas são imprescindíveis para a construção desta pele que me veste.

quarta-feira

Impulsividade

A da meninice na correría ladeira abaixo sem pensar na queda estatelada. A da adolescência no tamanho das pernas maiores que todo o resto e que medem o mundo. A da idade adulta nas palavras do amor e no não monossilabado em articulação vagarosa. A da velhice em saber qual o dia bom para partir. Ainda me faltam bocados de impulsos. Por enquanto ouço mais o baque do coração.

terça-feira

Confiar e querer confiar

Aceitar. Como bom e verdadeiro aquilo que nos dizem. Sem desconfiança. Sem temores, receios, olho fechado, olho aberto sobre o pragmatismo do que nos avançam. Acreditar. Crença. Fé. Confiar. Mesmo que no estranho da explicação não se encontre nenhum ponto infectado e com pus que provoque a tal interrogação. Mesmo que doutras vezes o lapso ou a omissão ou a deturpação ou a mentira pequenininha já tenham surgido a espreitar. Deste todo feito de bocados sem aparente sustentação fica a linha que une os retalhos e formam o belo tecido de se confiar cegamente.

segunda-feira

Questões

Pergunto-me se no amor se é o todo. Aquele sem limites, sem fronteiras, sem quês. Se não serão antes bocados que se permitem oferecer. E que na devolução do dar se tornam um todo. Reforçam o todo. Enriquecem os bocados do que se ama mas não são o todo. Que se do todo nos dessemos nenhum pedaço ficaría por descobrir. E encantar. E fazer amar ainda mais. E aumentar a mentira do que se diz que quando se ama se dá tudo.

domingo

Reservas

Ainda sei o que são os bocados de mim. Mas só aqueles que recortei e guardei para a minha intimidade. Pequeninos retalhos de várias eras que pela sua grandeza ocupam o único espaço que comporta tantos. O coração guarda-os. Só os olho quando estou só. E só mesmo quando a coragem me faz companhia. Aqui e nestas letras avanço com o todo. Reúno rasgões e uno-os ao meu todo. Evito fragilidades de apresentar os bocados isolados. Esses reservo-os no pudor.

sábado

A falta de um pedaço

Se eu soubesse que um pedaço de mim fazía falta a outro alguém fugiría. Não lho emprestaría. Fazía-lhe um favor de vida evitando todos os bocados de mim, feios, esgaçados, de cores garridas e pardos tons. Passaría por egoista. Faría de conta que os quero em mim como um todo fingido. Que de mim há pedaços de outros que também me fugiram. E agora passeio-os na minha abstracta forma de lhes ser um todo.

sexta-feira

Grito do silêncio

Silêncios. Os que se atiram ao rosto e espelham a voz da alma. Os que enchem de sons a sala vazia. O eu. Pedaços de silêncio que invadem o todo do raciocinio e enfrentam dores esquecidas. Confrontos. Os do silêncio nas verdades. A verdade. O ruído assobiado da verdade na solidão do silêncio e os pedaços de mim atirados ao canto da minha sala vazia. Encontro entre o silêncio e o grito do meu todo.

quinta-feira

Lá longe

Quando se olha uma bela paisagem ao longe só lhe admiramos a mancha viva de cor. É o todo. Se puxarmos de uns binóculos aproximamos árvores, nuvens, céus. Distinguem-se os verdes dos castanhos, estes dos azuis e dos azuis o chumbo que prepara a tempestade. Mas se caminharmos ao encontro dessa bela paisagem rápido se desmancha o enlevo pelos bocados de cor, as imperfeições do desencaixe do cenário. E dos pedaços que tanto gostámos desilude-se o olhar pelo todo que só existiu dentro do nosso querer.

quarta-feira

Pele da alma

No meu peito crescem pequeninos pedaços de uma trama muito mais rica do que a que me cobre enquanto pele. Pudera eu conseguir que todos a vissem. Pudera eu fabricá-la como um bicho artesão na eficiência das malhas que se cruzam e tapar-me de todas as cicatrizes que me desfeiam a alma.

terça-feira

Just no time in time

A propósito de infâncias e de idade adulta. A propósito de querermos que o tempo passe e os dias prolongam-se numa infinidade de horas que não passam. A propósito de esperarmos o dia e o tempo atirá-lo para a ansiedade, depois a saudade, a seguir a lembrança, no final a memória. A propósito de precisarmos de tempo e as horas voarem. A propósito de chegarmos atrasados ao nascimento e muito tempo antes ao encontro final.

segunda-feira

Um dia chega, eu sei

No dia em que a mão me tomar a cabeça e a cabeça já não consiga dar ordens à mão não vou chorar. Significa que chegou o dia. E darei por esse dia todos os dias em que escrevi bocados de mim como pedaços inteiros de uma mulher que está para além do seu corpo. Nem sequer precisam esses retalhos de ficar por cá e mostrar aos demais que fui eu toda naqueles pedacinhos. Basta-me que eu os tenha escrito e entendido. Serão sinónimo de me ter conhecido.

domingo

Ao Domingo

Ao Domingo gosto de ficar na cama. Mesmo que já esteja completamente desperta. Viajo pela semana que me tapa. Conto-lhe os dias como bocados de tempo em que sobressaio ou esmoreço. Coso-os ao dia último e aconchego-me nesta manta de retalhos sentindo-lhe as costuras. Ora macias, ora ásperas. Não desperdiço nenhum remendo. Dos que menos gosto evito que me toquem a pele. Mas dos que aprecio imagino-os como um manto de seda. Amarelo-Sol. Como só os Imperadores Mandarim tinham poder para usar.

sábado

Inteira

Às vezes penso que devería arrepiar caminho e parar de escrever. Parar com os retalhos de mim. Às vezes penso que quanto mais escrevo mais me rasgo em pequenos pedacinhos e mais me perco de mim. Se cada bocado é já um todo onde está o inteiro? E se desse inteiro há escrita donde vêm estes pedaços? Dos sentires, digo eu. Mas não é verdade. Porque eu sinto inteira.

sexta-feira

Palavra-Peso

Há palavras que me fazem chorar. São bocados do meu interior. Como os pulmões ou o fígado, absolutamente indispensáveis. Há palavras que são orgãos. Reprodutores. A palavra faz nascer a palavra. Mas nem de todas as palavras retiro o choro libertador que leva a outros choros. Choro a palavra quando ela é faca ou quando é demasiado bela. Não se aguenta nem uma nem outra. E por algumas serem tão belas quase me magoam quando mas oferecem.

quinta-feira

Compromisso

Escrever implica um compromisso. Eu sinto-o. Assumi-o desde que iniciei o Todo e aos Blogados. Precisei de o fazer. Precisei de escrever para expurgar grande parte dos males que me atingem e que não são qualificados. Precisei, talvez, para me mentir a mim própria e achar que me tornaría uma pessoa melhor. Ou para que na mentira achasse as verdades. Ou para que das verdades lhe encontrasse a poesia de serem menos feias.

quarta-feira

É tudo mentira

Quando o homem inventou a palavra inventou a mentira. Inventou a palavra por causa da mentira. Depois tornou-se arte. E nasceu o escritor, o poeta. Só assim se compreende que o homem seja um bocado de verbo. Bocados de mentiras. Porque leio nalguns arte pura e conheço-lhes as manhas. Mentem tão bem quanto escrevem tão bem. Mas tirem-lhes as palavras e sobra nada. Nem um fiapo do que quer que seja.

terça-feira

Contra

Há coisas que não se ligam. Peças que não se encaixam. Por mais que se tente, por mais que se rodem e contornem não se juntam, não se adaptam, não se moldam. O esforço para as fazer servir uma na outra quebra-as. Rouba-lhes o inteiro. Sobram-lhe pequenos pedaços como membros que fazem falta para andar ou para abraçar. Assim há homens e mulheres que não se encaixam. Por mais que tentem. Até mesmo por mais que se gostem. De uma maneira ou outra a violência da insistência corrompe-os, rasga-os, rouba-lhes viço, tira-lhes os pedaços bons do encanto e descarnam maldade e pequenez.