sábado

Intervalos

A propósito de pausas. De descanso. Da necessidade de dar tréguas a si mesmo na vontade de espairecer, fugir, escapar ou do mais comezinho, nada fazer. E do nada fazer fazer tudo. Delinear estapas novas, reformular conceitos e prioridades. Talvez estes bocados de mim estejam precisados desses intervalos para se reconstituírem em novos pedaços. Não num todo, unificado e reformulado, que do passado arrasto correntes e mesmo nos intervalos dos aros que as formam há carnes agarradas que não me permitem esquecer de que blogados este blog tem sido construído.

sexta-feira

Da ponte dos extremos

Do bocado do amor há sempre um fio ténue, forte e invisivel como o que a aranha tece, até ao desagrado do ódio. Ama-se desesperadamente, odeia-se vivamente. Quando nos encontramos numa ponta dessa travessia achamos e até negamos que do outro pedaço não há vontade alguma de o atingir. Mas apenas o pé avança e decididamente engendramos pilares e sustentação passível de nos carregar o histórico e o peso de tanta dor e até ao outro lado é um fósforo. Que arde todos os bocados do que chamámos de bem.

quinta-feira

Apenas um bocado do que se gostaría de ser

Título comprido. E nem mesmo assim se atinge a intenção do todo. Não é uma mera e mesquinha inveja de desejar ser como outrém. É a apreciação do que ao longo da vida tenho tragado como ciumite aguda. Não de outros. Não de cousas. Mas da façanhuda e empertigada maneira de dizer o que acho certo e o que acho errado. Isso, incontinências verbais. Prefiro chamar-lhes orgasmos verbais, que da satisfação de dizer o que vai na mente não há igual. E afinal todos ficam a saber com o que contam dos meus bocados de mau feitio.

quarta-feira

Amarguices

As de boca e as de peito. As primeiras passam com uma boa escovadela, elixir, gargarejos, cuspir tudo o que se sente. Uma visita ao dentista duas vezes por ano para vigiar, prevenir, consertar. Das do peito é outra coisa: é aquele pedaço muito semelhante a expectoração que se agarra com unhas e dentes e por muito xarope que se engula não descrava. É que o amargo de peito fermenta, dilata, procria e geralmente quando expande não só vomita como exala um fedor de inveja e egoísmo que no final acaba por derreter o próprio. Alguns chamam-lhe azia, vem o nome dos ácidos corrosivos que dissolvem o bolo alimentar mas destes ódiozinhos vive muito o bocado do que se é na verdade. Amarguem-se então. Consumam-se nessa proscrita fé que ateia o próprio inferno. Maldito blogado este!

terça-feira

Generosamente

Por falar em surpresas. No mérito de as receber. No mérito de quem as oferece ser recompensado pelo sorriso. Ser agraciado pela devolução da surpresa sem tempo contado, nem na medida certa da surpresa igual. Por falar em surpresas como presentes únicos. Como acrescentos de vida. Como um pedaço que dá mais valia ao bocados da vida. Como um bocado a recordar pelo todo da vida. E de cada vez, como genuina e singularmente, ser tomada a surpresa como um acto de generosidade neste mercado de trocas que se tornou o viver.

segunda-feira

Quando

Quando é que me tornei mulher. Quando é que me tornei escritora e depois me arrepiei na poesia. Quando é que estes bocados entraram em mim e se colaram e me tornaram noutro pedaço, que não o todo, pois sei que outros hão-de chegar e igualmente integrar-me e nessa altura hei-de voltar a fazer a mesma pergunta. Sem resposta. Quando é que me tornarei velha, aos bocadinhos, ruga a ruga, engelhada, mais pequenina. E nesse tempo por chegar, regressarei à mesma inquietação desta pergunta: Quando foi que isso aconteceu? E quando me tornar velha por dentro? Sem me perguntar mais nada?

domingo

Pedaços de coisa velha com sabor a novo

Haverá sempre qualquer coisa por dizer. Decerto qualquer coisa mais por escrever. Coisas novas a partir de palavras usadas. Coisas velhas ditas no sentido de palavras reinventadas. Pessoas novas pelos bocados ouvidos noutro tom de voz. Pessoas já muito conhecidas pela veleidade com que vulgarizam alguns conceitos. O amor nunca será um todo mas um todo constituído de pedaços que se renovam na medida dos seus autores e na veracidade com que desempenham esse acto, na entrega e no receber e ainda no cativar. E por muito que se repitam frases, afirmações, se pause a respiração nas reticências do poema nunca será mais do mesmo, pois para amar são precisos dois e os bocadinhos de um são todos os dias diferentes dos bocadinhos dos outros.

sábado

Insatisfação

Reclama-se do calor e apelam-se às razões do buraco do ozono; manifesta-se contra o frio e a chuva mas aprecia-se o cheiro da terra molhada. Ter e não ter. A propósito desta incapacidade exclusivamente humana e racional da irracionalidade de nos perdermos em manobras de distracção e perdas de tempo, quando afinal apenas nos deveríamos focar em aproveitar o que se nos oferece na agilidade do pensamento para reinventar saborosamente o que a natureza permite. Tomar banho de mar enquanto a chuva cai copiosamente. Ouvir uma canção de Natal em Agosto. E renascermos destes bocados na insatisfação de querermos que a surpresa se revele no mote do dia.

sexta-feira

Quem vê caras não vê blogados

Há uma estranha mania de encaixar fisionomias na capacidade para desempenhar funções. Caíndo num exemplo não muito singular e até por demais vulgar, refira-se que sempre se achou que uma mulher bonita tem algumas dificuldades em ser inteligente, assim como um homem de aspecto boçal nunca poderá ser um artista. Nada mais errado. Os pedaços que fazem gente bonita nem sempre se acham num nariz fino e as mãos gretadas do trabalho têm tantas aptidões para tocar um instrumento quanto as do oleiro a criar uma peça ou a dar um açoite ao filho. Quero eu dizer com isto, que a surpresa de me acharem hábil resume-se ao facto de me verem como um todo, ignorando que dos meus bocados há a fragilidade natural de ser mulher mas a força do búfalo para encarar um terreno por lavrar.

quinta-feira

Retalhos de bondade

A propósito de bondade. De solidariedade também. Acredito. Mas não acredito que dentro dos que a apregoam e até praticam se mantenha constante este estado de prestação do bem sem serem atravessados por uma brisa (mesmo soprada) de vingança, praga que seja, um bem-feita! até. É que o ser humano, embora o tente esconder, é dotado desses pedaços maravilhosos de ataque e defesa, que no fundo é o que compõe a sua riqueza interior e a sua tentativa de ultrapassar-se nas dificuldades e revelar, aí sim, de que tecido é feito a bondade.

quarta-feira

Palavras leva-as o blogado

Das grandes calamidades que se proferem, tenho para mim que a maior é aquela que o próprio diz de nunca cometer tal acto, comparando-se - ou afastando-se o mais possível - de outrém. Esta verdade absoluta é talvez a verdade mais enganosa, dando acerto ao provérbio desta água não beberei. Bebe sim. Aliás, se a circunstância a isso se prestar bebe toda e até lambe o copo se for preciso. Estes bocados de enganos, doces enganos, amargos enganos, vêm trazer uma ruptura à institucionalização do todo enquanto pilar de conduta. Racha, sedimenta-se, esboroa-se em muitos pedaços e até em areia fina levada pelo vento. E aqui leia-se vento como lembradura.

terça-feira

Presenças

Por vezes nem som é preciso. Basta o passo decidido, o queixo apontado à vontade de fazer seu o caminho, o redor. Desse bocado de território conquistado não consta o tamanho, a cor da pele ou a do cabelo e até mesmo o género. Dessas presenças que nunca se esquecem somos na maioria compelidos a imaginá-las sós num palco, num púlpito e no entanto, muito para além de encherem esses pedaços de arte completam-nos por dentro, satisfazem-nos, dão-nos confiança, esquecemos a dúvida. Questiono-me sobre se todos não seremos parte dessa presença que no fundo, no fundo, se não houver assistência são tão "ausentes" quanto outro qualquer.

segunda-feira

Vocações

Quando pequeninos perguntam-nos o que queremos ser quando formos grandes. A meio das dores do crescimento impelem-nos para uma resposta pronta sobre o que pretendemos do futuro. Adultos embrenhamo-nos de fuças naquilo que ávidamente queremos para nós e passados alguns anos esgotados, desencantados e velhos pedimos que nos arrastem para o principio porque afinal já sabemos que não queremos ser aquilo em que nos tornámos. Por isso, não se deve desistir dos sonhos nem embarcar no dos outros só porque parece bem. E muito menos dobrarmo-nos sob as adversidades que no fundo só valorizam a verdadeira vocação. (Textinho moralista... também faz parte dos bocados da vida.)

domingo

Fim

A propósito de tudo ter um final. De até estes blogados um dia (não sei quando) se encherem de um todo e se tornarem um excesso dos meus pedaços, dos meus dias. Da minha vontade. Que esta boa ou crispada, ao sabor dos humores, é quem tem o maior quinhão nestes bocados. E se um dia ela se tornar menor ou até mesmo enfartada, há que saber que a dignidade da saída é o melhor blogado para uma morte virtual. Sem recuo.

sábado

Artes

A escrita tem a faculdade de preservar momentos etéreos e aprisioná-los no papel por todo o tempo que o autor quiser. Esse é um poder que algumas artes têm. A verdade é que há um senão e embora perfeita, nada o é na sua plenitude, corta-se-lhe a capacidade de reprodução no acto do ponto último ou quando o autor assim o determina. Quer isto dizer, que por muito que tente, o escritor não consegue escrever o mesmo duas vezes seguidas, com o mesmo sentido, o mesmo sentimento. Na dança, a coreografia é anotada para que nos anos vindouros alguém a possa fazer segundo o modelo original. Dependendo do bailarino assim se tornará nova na renovação, mas sempre emparedada no que está destinado pela musica e pelos passos. No verbo assistimos às modulações da vontade, dos humores e na maioria dos amores. E no pintor escrevem as tintas a cor do verbo, tal como o escultor sente sob as mãos a pedra tornar-se lisa em palavras esculpidas a ferro e fogo.

sexta-feira

O que foi e já não é

A propósito de antigos namorados e dos encontros que a vida marca. Embora em algum tempo se tenha partilhado da mesma intimidade parece que aquando do reencontro apenas achamos um estranho. Duvidamos dele. Duvidamos de nós. Duvidamos que seja o mesmo. Duvidamos do nosso carácter e do nosso gosto e ainda da nossa vontade. Questionamos se por alguma circunstância obscura fomos capazes de dividir segredos e entregar beijos numa boca que nos parece rota e sem vinco de personalidade, quem nos obrigou a tal... ou então, passamos um bocado ainda pior: como foi que não nos apercebemos que era assim e o deixámos fugir sem a arte de cativar?

quinta-feira

Acelerada vida

Há momentos da vida por nos trazerem uma tão grande felicidade, que nos enchem e gastam mais rápido essa mesma vida. Acelera-se. Vive-se mais depressa. Correm-se nesses bocados feitos de segundos, anos, muitos anos, que durante outros tantos anos nos perdurarão na memória e no peito e no sorriso que pomos por cada vez que puxamos dele e fazemos em segundos o todo que compensa a vida pelos muitos pedacinhos de tanta infelicidade.

quarta-feira

Muito obrigado, não obrigado

Da boa educação e polida gentileza atira-se o obrigado. Desleixado. Mas soa bem. Não se sente nada. No genuíno da questão cederíamos 50% dos agradecimentos; a outra metade vai para o politicamente correcto. Assim como também se diz muito obrigado quando não há lugar a tal, quando nada nos é entregue ou facilitado. Mas pela força do hábito, lá damos nós mais um bocado.

terça-feira

Beijos e abraços

A propósito de afectos. Os estreitados. Entenda-se abraçados. A propósito de beijos que se largam junto ao rosto mas não se depositam nas maçãs do mesmo. A propósito do beijo ser socialmente aceite, entregue entre estranhos que trocam cumprimentos uma única vez na substituição do valente aperto de mão. A propósito do abraço ser encarado como intimidade quando o encostar da boca na pele da face não o é. A propósito da banalização do beijo. E da volúpia que se entende quando um homem e uma mulher se encaixam num aperto selado pelo enrolar dos braços. Mesmo não havendo contacto entre bocas.

segunda-feira

Falar, falar, calar, calar

Considerando que há pessoas que calam o que sentem há outras que sofrem de uma incontinência verbal, em que tudo o que lhes atravessa o comando do pensamento perde o norte na vocalização do que sai. E se sai muita asneira e muita palha, verdade é que também libertam coisas verdadeiramente sinceras. A questão é achá-las. Parece que então o nosso cérebro se defende, preparando-se para um caudal exaustivo sobre a tediosa tarefa de escutarmos patacoadas em linha, distraíndo-se de reter o que de facto é genuíno. Arrumamos o assunto. Não estamos para isso. Um alivio quando o botão se desliga. Perdemos assim verdadeiros pedaços em que verdades aos bocados são atiradas de uma forma tão tosca e bruta que nos razam sem apanharmos o verdadeiro sentir. Mas agarramo-nos ao silêncio. Àquele que pesa, que nos adensa, que nos constrange e por temor do que não ouvimos julgamos que o bocado da verdade apenas e só reside aí.